1 ano de Miguel
Desse tempo, algumas lembranças são apenas flashes, outras são nítidas. Falo primeiro das memórias turvas:
Alguma coisa se mexendo dentro da minha barriga.
A gestação saudável que de repente se complicou.
Eu e Luciano assistindo um jogo da Copa enquanto aguardávamos para fazer o exame.
A Dra. Suzana ligando insistentemente para saber do tal exame.
A médica do laboratório alertando pelo telefone a obstetra: “O bebê está em fenômeno de Centralização” (o sangue de Miguel só circulava entre cabeça e coração, o resto do corpo fica em segundo plano).
A Dra. Suzana falando ao celular que o tempo havia se esgotado.
O parto feito às pressas, em no máximo 15 minutos, já que a bendita ultrassonografia mostrava que o bebê estava em sofrimento.
Uma oração confusa num quarto de espera.
A obstetra dizendo bem longe que o corte da cesárea seria longo para que ela pudesse tirar o bebê com o mínimo de manipulação (depois eu entenderia que isso foi essencial para evitar uma hemorragia intracraniana).
As pernas tremendo de forma descontrolada, como se fossem se despregar do corpo.
A oração pedindo a qualquer Santo que me acalmasse.
A dormência nas pernas.
Luciano dizendo que “nasceu”.
Luciano querendo chorar e eu o impedindo, para que eu mesma não caísse em desespero.
O lençol azul escuro sendo levado às pressas nos braços de alguém de toca (fiquei sabendo que essa era a Dra. Miriam, chefe da UTI Neo Natal).
O conteúdo do lençol azul voltando dentro da caixa transparente.
Um monte de pele vermelha e pequenos ossinhos amontoados formando um bebê.
Eu chamando esse monte de pele e ossos de “Passarinho”.
Um apagão.
Descobrir que meu bebê é um prematuro, mas não um prematuro qualquer.
A ignorância sobre o que é um Prematuro Extremo.
A ilusão de que mesmo muito frágil, ele só ia ganhar peso e ir embora.
A completa falta de noção do que estava por vir.
E o que veio.
O resto vocês já sabem.
Narro agora, a nitidez dos meus dias atuais:
O cabelo liso e ralo no topo da cabeça no melhor estilo moicano.
Pequenas mãos e pés que pedem para serem mordidos.
Os olhos pretos e vivos como duas jabuticabas brilhosas.
As bochechas grandes e rosadas.
Pernas e braços finos e compridos.
As mesmas pernas compridas fazendo flexões no colo querendo pular.
O barulho que ele faz com a garganta, parecido com um ronronar quando está feliz.
O dedo indicador todo babado enfiado no canto da boca.
A mão inteira e babada enfiada na boca.
A alegria ao tomar banho.
A gritaria quando acaba o banho.
A briga para limpar as orelhas e o nariz.
Todos os objetos da casa se transformaram em pandeiros para ele bater.
O jeito como ele ajeita a chupeta nas mãos e acerta a posição para colocar na boca.
A cara de - “ai meu Deus, lá vem”- com que ele olha para fisioterapeuta.
Os barulhos engraçados que ele faz querendo falar.
O abuso ao querer ficar sentado quando nem consegue se equilibrar.
O sorriso por trás da chupeta quando me vê.
O xixi que ele faz quando eu já estou terminando de trocar a fralda e aí tenho que começar tudo de novo.
As perninhas balançando para mexer a cadeirinha sem ajuda.
O bumbum magro.
A prisão de ventre sem solução.
Cicatrizes no braço, nas costas, na perna, no pescoço e nas costelas que estão sumindo.
O sorriso vazio, cheio de gengiva.
O desespero da fome durante a madrugada.
O desejo desesperado de dormir uma noite inteira, sem interrupções.
O jeito como ele se desespera pela mamadeira, com as mãos e o biquinho abertos.
A despedida com vários beijos e cheiros pela manhã antes de sair para trabalhar.
A saudade dele durante o dia.
O desespero de vê-lo crescer saudável e recuperar o prejuízo da “prematuridade extrema”.
A preocupação de fazer tudo que ele precisa para ter qualidade de vida após a UTI.
Pensar no primeiro aninho dele, ver tudo o que passamos e perceber que mesmo assim o caminho não está nem metade.
Olhar para Miguel e ter certeza de como eu sou sortuda.